sexta-feira, 17 de abril de 2009

Canta!

A menina cantava sozinha. A felicidade era muito amiga dela, vinha todos os dias, batia à sua porta e lhe punha na boca as músicas e as gargalhadas, que eu podia ouvir de muito longe. Eu conversava com ela, de vez em quando, mas não era como se ela olhasse nos meus olhos. Na verdade, os seus olhos estavam abertos para as pessoas, como túneis, que ninguém sabia onde iam dar. Ela, sem saber - tinha tão pouca cultura, que nem o livro das Miss Universo lera - citava Exupéry, dizendo que os olhos são cegos e, também inconscientemente, ela própria parecia enxergar com o coração.
Sua voz não era das mais belas. Aliás, era feia, para ser sincera. Mas quem a ouvisse queria ouvi-la para sempre, porque a sua simples presença irradiava alegria. Ela era feliz, e eu procurava de onde vinha tudo isso, até que ela, um dia, respondendo à pergunta que eu não sabia como fazer, disse, ignorando Tolstói, dessa vez: 'Se você quer ser feliz, seja!'
Ela sabia que era feliz, e quem o sabe, pode-se dizer, o é verdadeiramente. A prova, sem dúvida a mais indelével, é que ela cantava só por cantar.

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"Ah, canta, canta sem razão!"
(Pessoa)