quinta-feira, 24 de março de 2011

Chamava-se Francisca. Só Francisca. Mas não precisava das especificações severinas - era a única Francisca da região. Aliás, se vamos falar de como via as coisas, ela era a única Francisca do mundo inteiro. As cores, para ela, não significavam nada. Onde alguns viam vários tons e ficavam maravilhados, ela via traços pretos e brancos. Para ela era simples: amarelo, azul claro e cor-de-rosa queriam sempre dizer branco; verde, marrom e cinza significavam preto. Francisca era mulher macho, nordestina sofrida das secas e vinda num pau-de-arara para São Paulo, onde trabalhou três anos fazendo tapiocas, mas ao ouvir dizer da primeira gota de chuva, veio com o eu-lírico da volta da asa branca para sua casinha, nesse interior de ninguém. A Francisca não incomodava o sofrimento. Desde o seu nascimento, soube que a vida era mais que isso e que, como sua mãe lhe dizia, quem tem o que comer e vestir só não é feliz se não quiser. Foi à escola durante algum tempo, mesmo depois de adulta, sem que nunca tenha conseguido fazer aquele desenho da barriguinha com uma perninha, que diziam ser a letra "a". Desistiu de aprender, porque tinha certeza que aquele povo de nada sabia. Imagine só, a primeira letra do alfabeto ser uma bolotinha! Ah, não! Disso Francisca não queria saber. Ela pensava, isso há muito tempo, que se aprendesse a ler e escrever conseguiria trazer a chuva para o sertão. Não que se importasse com a plantação, ela, uma pobre coitada que não tinha nem onde cair morta, mas porque quando estava em São Paulo e chovia, ela via as pessoas pararem na rua e olharem para cima, para um traço preto no céu, e ficarem maravilhadas. Raciocinou, portanto, que se conseguisse fazer chover em Riachinho, veria o tão famoso arco-íris, porque as cores, pensava ela, só apareciam às pessoas quando elas voltavam pra casa. Um dia, depois de já muito velha e tendo desistido de ler, da chuva e do arco-íris, num daqueles anos de seca forte, Francisca fechou os olhos, sentada na cadeira de balanço do terraço. Escutou o barulho de seus netinhos brincando, e de seu interior surgiu um riso de contentamento. Seus pequenininhos pareciam as gotinhas de chuva que ela tanto queria que caíssem, mas que sempre falharam. Quando abriu os olhos, viu. O céu ainda estava aberto, mas ela podia vê-las caindo de uma só nuvem: gotas coloridas, aos milhares.